Brasil opressor e autoritário, mas sedutor. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Além do baixo custo da mão de obra, as empresas
transnacionais que se estabeleceram no Brasil sempre contaram com isenção ou
redução de impostos, matéria-prima por um custo menor, cessão de terrenos para
instalação, infraestrutura feita e mantida pelo Estado (estradas, portos,
ferrovias, aeroportos etc.) e grande redução em tarifas de água e energia. Para
reproduzir uma sociedade injusta, desigual e autoritária de alguma forma desde
o ano de 1500, a classe dominante brasileira defende a ferro e fogo a tríade “tradição, família e propriedade”, o que
se exasperou na criação da TFP – Tradição, Família e Propriedade –, organização
religiosa de extrema direita, que durante a ditadura militar-civil-empresarial,
de 1964 a 1985, promoveu uma verdadeira caçada aos “comunistas”, a quem lutava
pela terra e a quem tinha a ousadia de subverter algum aspecto dos valores
arcaicos da família, da propriedade privada capitalista e da tradição.
Observe-se que a TFP defendia e defende
a família nuclear monogâmica, a que produz o ser social como “indivíduos”. “A forma das relações familiares de nossa
sociedade atual caracteriza-se por uma estrutura que isola, inicialmente, o
próprio núcleo familiar, separa-o da atividade produtiva, rompe a rede de
dependência que unia antes os seres sociais” (IASI, 2006: 182), nas
culturas camponesas, indígenas ou afrodescendentes. Em outras formas de
família, a criança era/é cuidada por uma multiplicidade de adultos, de
adolescentes e convivia/convive com muitas outras crianças, o que pode gerar
uma identidade mais próxima do ‘nós’ do que do ‘eu’ individual.
A proclamação da República dia 15 de novembro de
1889 não foi uma conquista dos adversários do poder centralizado na monarquia.
Conforme pontua Marilena Chauí: “Histórica
ou materialmente, a República exprime a realidade concreta de lutas
socioeconômicas e os rearranjos de poder no interior da classe dominante, às
voltas com o fim da escravidão, com o esgotamento dos engenhos, com os pedidos
de subvenção estatal para a imigração promovida por uma parte dos
cafeicultores, com a expansão da urbanização e a percepção de que o país
precisava ajustar-se à conjuntura internacional da revolução industrial”
(CHAUI, 2000, p. 43). Uma das expressões da ideologia dominante que apregoa o
Brasil como um “paraíso terrestre” está na bandeira brasileira. A filósofa Marilena
Chauí recorda que “desde a Revolução
Francesa, as bandeiras revolucionárias tendem a ser tricolores e são insígnias
das lutas políticas pela liberdade, igualdade e fraternidade. A bandeira
brasileira é quadricolor e não exprime o político, não narra a história do
país. É um símbolo da Natureza. É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso”
(CHAUI, 2000, p. 60).
Para compreendermos a importância e a necessidade
da luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana, temos também que
compreender a ideologia dominante, que (o)corre no mais profundo das relações
sociais, gerando fetichismo e coisificação, galhos que circulam a ‘seiva’ do
capital. Desde a invasão do Brasil pelos brancos portugueses, em 1500, tensões,
conflitos, contradições e violência permeiam e perpassam a nossa história.
História, enquanto ciência, envolve contexto, processo e movimento (Cf.
THOMPSON, 2001, p. 243). No Brasil, um mito fundador sustenta uma sociedade
autoritária, em uma operação de permanente ocultamento das contradições,
injustiças e violências. Como a tradução da palavra da língua grega mythos, mito, no sentido antropológico,
refere-se a uma narrativa que apresenta uma “solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não
encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade” (CHAUI,
2000, p. 9), a percepção da realidade é bloqueada sob um impulso que estimula a
repetição de algo imaginário. Um mito fundador para o Brasil foi criado e é
recriado todos os dias. “Um mito fundador
é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas
linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser
outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo” (CHAUI, 2000, p. 9). De
forma disfarçada, o mito fundador se repete indefinidamente; muda-se a
aparência, sob novas roupagens, para manter em outros moldes a mesma engrenagem
de uma sociedade autoritária.
“No modo de
reprodução capitalista, no capitalismo, não há coisa alguma e pessoa alguma que
escape da condição de mercadoria” (CHAUI, 2000, p. 12). O capitalismo é o
mundo desencantado, segundo Max Weber, mundo em que desapareceram as
representações mágicas; um mundo que perdeu a aura, conforme Walter Benjamin. “No mundo da mercadoria, coisas heterogêneas
perdem a singularidade e a raridade, tornam-se homogêneas porque são trocáveis
umas pelas outras e todas elas são trocáveis pelo equivalente universal e
homogeneizador universal, o dinheiro” (CHAUI, 2000, p. 13).
O sociólogo José de Souza Martins pondera: “Na medida em que, através da alienação do
produto do trabalho, cada sujeito só pode relacionar-se com os outros através
da mercadoria, de fato, relaciona-se com os outros como se fosse destituído de
condição humana, como se fosse coisa. Enquanto isso, a mercadoria é que
estabelece relações sociais, como se ela fosse dotada de humanidade. Em
decorrência os homens – e as mulheres (acréscimo nosso) - ao se relacionarem
uns com os outros através das coisas, através das mercadorias, estabelecem
relações que são coisificadas” (MARTINS, 1986, p. 57).
A noção de encantamento exige também a noção de
desencantamento. Max Weber se refere a quê quando fala que o mundo capitalista
está desencantado? Uma sociedade capitalista desencanta pelo verso, mas encanta
pelo reverso. As mercadorias passam a ser consideradas objetos ‘vivos/humanos’
e os seres humanos, os trabalhadores, são reificados, isto é, coisificados,
isso em um processo sutil de fetichização. Assim, reificação complementa o
processo da fetichização. Enquanto a fetichização atribui poderes e
características humanas às coisas, a reificação coisifica os seres humanos,
que, inevitavelmente se colocam sob o controle daquilo que produzem. Assim, o
que é humano se torna crime e o que é reificado e fetichizado se torna o
‘real’, o aceitável, o normal, a regra que normatiza as relações sociais na
sociedade capitalista. Ajuda a compreender os processos de fetichização e de
reificação a análise que Marx tece sobre a relação íntima existente entre
produção e consumo, que afirma: produção é consumo também.
Enfim, tudo isso produz e reproduz cotidianamente no Brasil uma sociedade opressora e autoritária, mas sedutora e, por isso, difícil de ser transformada em uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, sustentável ecologicamente, democrática politicamente, responsável geracionalmente e respeitosa culturalmente e religiosamente.
14/09/2021
Referências
CHAUI,
Marilena. Brasil: mito fundador e
sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
IASI,
Mauro Luis. As metamorfoses da
consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
MARTINS, José de Souza. Sobre o modo capitalista de pensar. 4ª
edição. São Paulo: HUCITEC, 1986.
THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (org.). Campinas, São Paulo: Unicamp, 2001.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo,
ilustram o assunto tratado acima.
1 - Aula
magna de vida emocionante: COZINHA SOLIDÁRIA do MTST, Belo Horizonte, resgate
de vidas-Vídeo 3
2 - MTST
com 12 COZINHAS SOLIDÁRIAS EM MG. Em BH, no bairro Floresta, à Rua Mucuri,
271–Vídeo 1 – 11/9/21
3 -
“Solidário e lutando por justiça, mas ameaçado”: COZINHA SOLIDÁRIA, MTST em BH,
MG. Vídeo 5 –13/9/21
4 - Padre
Josimo Tavares: Testemunho Espiritual Profético, TV Pai Eterno. Por Frei
Gilvander - 10/9/2021
5 -
Deslocamentos forçados atuais: a fuga para o Egito em escala global. Frei
Gilvander, Janaína, Angoró
6 -
Brasil, colônia de superexploração? - Por frei Gilvander - 09/9/2021
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da
CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB
(Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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